segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Nietzsche


Nietzsche


(O presente texto é a tradução para o Português, de uma transcrição de uma conferência proferida por Julián Marías, que, como é de seu estilo, não utiliza texto escrito. Conferência do curso "Os estilos da Filosofia", Madri, 1999/2000 - edição: Jean Lauand. Tradução: Elie Chadarevian - http://www.hottopos.com)


 


Julián Marías


 


Boa noite, hoje vamos falar de Nietzsche, figura complexa, interessante, com uma certa anormalidade - tínhamos visto uma certa anormalidade, digamos, genial, nos últimos anos de Comte; também houve uma certa anomalia, não muito grande, en Kierkgaard-; a anomalia em Nietzsche foi muito mais grave.


Friedrich Nietzsche nasceu em 1844. Teve uma rápida carreira de filólogo, foi professor de filologia clássica em Basiléia. Depois deixou a cátedra e dedicou-se a escrever; ele tem uma obra filosófica e literária muito importante. Em 1889 perde a razão e vive em estado de loucura -de grave loucura- onze anos: morreu em 1900.


Como vêem, é uma vida anormal em muitos sentidos, é uma figura particularmente atraente, que teve um êxito muito grande, um êxito especialmente  literário: era um grande escritor. Ele tinha um sentido profundamente arraigado da arte e da literatura. Foi uma figura que exerceu fascinação sobre muitos, em diversos países, muito particularmente na Alemanha, não somente porque era sua língua, mas porque era um grande escritor em língua alemã.


Houve muitas traduções de Nietzsche, nem sempre boas, nem sempre seguras; freqüentemente se tem enfatizado o aspecto mais extremado que tinha a obra de Nietzsche e teve por exemplo uma manifesta tendência à desmesura. Os senhores conhecem a famosa doutrina dos dois conceitos de Nietzsche, das duas tendências: o apolíneo e o dionisíaco. Ele falou longamente disto -evidentemente procede de sua cultura clássica, de seu estudo da língua grega e da literatura grega- e sua obra, em conjunto, oscila entre o que ele chamava apolíneo -ou seja, a medida, o equilíbrio, a serenidade- e o dionisíaco: exaltado, violento, apaixonado.


Esta influência -em grande medida literária- está além disso ligada a duas grandes devoções de Nietzsche. Uma delas é Schopenhauer, um grande escritor -eu acho que maior escritor que filósofo. Ele também tem um talento literário muito particular -lembrem sua oposição (em certo modo pelo ressentimento... devido ao êxito enorme que teve na Universidade de Berlim) a Hegel. Mas, afinal, ele teve uma influência difusa, não tanto por sua doutrina mas por seu talento de escritor. Nietzsche cultivou também -como Schopenhauer- um gênero interessante e um pouco duvidoso também: o do aforismo. O dois foram dois grandes autores de aforismos. Aforismos para a vida, dizia Schopenhauer; os aforismos de Assim falava Zaratustra, de Nietzsche.


Ele tinha escrito um livro inicial, um livro ligado a seus estudos clássicos em sua cátedra de Basiléia, O nascimento da tragédia, Die Geburt der Tragödie. Esse livro foi muito combatido pelos filólogos profissionais. Por exemplo, o mais famoso filólogo e de maior prestígio acadêmico em sua época, Wilamowitz Moellendorf, fez  uma crítica muito dura de O nascimento da tragédia, que lhe parecia um livro caprichoso, inexato etc.


Mas os livros -livros apaixonados, sedutores- de Nietzsche foram lidos enormemente; nem sempre foram lidos filosoficamente, foram lidos como documentos biográficos, como formas de exaltação, como recreação literária.


O aforismo é um gênero particularmente atraente: são escritos breves, às vezes são frases fulgurantes, brilhantes, com expressões felizes; contudo eu acho que a filosofia não aceita o aforismo, a filosofia tem uma certa resistência; porque o aforismo é como uma flor cortada, arrancada; ou seja, elimina-se a justificação -o aforismo não se justifica: o aforismo se formula, faz seu efeito, freqüentemente é refulgente, excitante...- mas a filosofia é essencialmente justificação.


A filosofia justifica o que diz. Lembrem a definição que eu cunhei há muitos anos: "a visão responsável". Eu sempre acho que a filosofia é fundamentalmente visual, existem filósofos que são visuais e outros que não -lembrem como falávamos de que um dos filósofos menos visuais é Santo Tomás.


Tem havido grandes aforistas (não no sentido literal porque são fragmentos de um livro que não chegou a escrever) como Pascal; Kierkgaard é aforista em grande parte de sua obra; Unamuno -na primera parte de sua obra- também o foi em alto grau- todos eles têm uma certa semelhança.


Schopenhauer de um lado e, por outro lado, a música de Wagner. Wagner também é uma figura muito importante na vida e no pensamento de Nietzsche (entre parêntesis: Nietzsche gostou muito - como comenta em uma carta a Peter Gast, seu amigo - de "La Gran Vía", a zarzuela espanhola. Cada vez me parece mais valiosa a zarzuela espanhola das últimas décadas do século XIX e a música é particularmente interessante e atraente mesmo que não tenha sido muito apreciada pelos profissionais, pelos autores que escreveram sobre música).


Grande parte das obras de Nietzsche são aforísticas, por exemplo: Para além do bem e do mal, Assim falava Zaratustra, A genealogia da Moral e uma que é particularmente importante, que teve influência muito grande, que se entitula: Die Wille zum Macht, A vontade de poder. Este título não é de Nietzsche; este título foi dado, em grande parte, por sua irmã e seus seguidores; as edições mais recentes costumam ter como título Nachlasse, O legado. O título A vontade de poder foi um título lançado em época já muito posterior à morte de Nietzsche, especialmente quando começava a dominar a ideologia que haveria de ser depois o nacional-socialismo. O título é de certo modo tendencioso, é um título da exaltação do poder, da vontade do poder, da capacidade de afirmar-se, do homem que se afirma como poderoso, como enérgico e tudo isso forma com uma exaltação de tudo que é militar,  guerreiro... que teve grande prestígio na época. Mas o título, insisto, não é de Nietzsche e provavelmente cabem interpretações diferentes dessa obra, bastante diferentes da habitual.


Nietzsche trata de defender a atitude dos poderosos, dos homens fortes; é muito profundamente hegeliano; ele vai contra a compaixão, a piedade com os necessitados; crê que tudo isso é contrário à exaltação da vida, que é contrário aos valores vitais. É curioso que essa exaltação de tudo que é enérgico, poderoso, triunfador em Nietzsche, dá-se ao longo de uma vida em que a realidade de Nietzsche é bem o contrário da exaltação do poder enérgico e dominante.


A idéia da compaixão, a idéia da tolerância, a idéia da piedade, tudo isso lhe parece bastante desagradável e condenável. O que ocorre é o seguinte: a época em que Nietzsche vive, 1844-1889 (é a época de sanidade, depois já começa a loucura e deixa de escrever e deixa de existir como pensador), neste momento há o domínio de uma religiosidade oficial, muito institucional - não esqueçam a atitude de Kierkgaard, há muitas semelhanças...


Já em 1933 ou 1934, desde o momento em que acaba de triunfar o nacional-socialismo, começa uma espécie de culto a essas formas de exaltação da vida enérgica, poderosa: não esqueçam da expressão muito famosa de Nietzsche "a moral dos senhores e a moral dos escravos", há a Herrenmoral e a Sklavenmoral, a moral dos homens passivos, inferiores, débeis, os quais, afinal, despreza.


Também é de Nietzsche a frase, digamos, escandalosa: Gott ist tot, Deus  morreu. Eu recordo que -faz pouco tempo que esta frase voltou a ficar na moda- em uma parede de Nova York alguém pintou um grafite, que dizia: Gott ist tot - Nietzsche e alguém acrescentou: Nietzsche ist tot - Gott.


Esta idéia de moral do homem enérgico, de certo modo implacável, se contrapõe precisamente à moral da resignação, da passividade, da compaixão, para Nietzsche isto parece uma certa negação da vida.


Não esqueçam que em Nietzsche há uma mudança de atitude, uma espécie de inversão do pensamento de seu admirado Schopenhauer. A obra de Schopenhauer é uma obra fundamentalmente pessimista. Afinal -além de umas raízes de hedonismo- é a abolição da vontade de viver, é a maneira de evitar o sofrimento... Toda essa atitude de Schopenhauer é de certo modo invertida por Nietzsche. Nietzsche afirma o que ele chama de os valores vitais. Os valores de exaltação da vida, uma atitude triunfalista, uma atitude de domínio e de plenitude. Mas -ao mesmo tempo- isto também não é totalmente assim. Porque há um conceito capital no pensamento de Nietzsche que é o que ele chama Umwertung alle Werte a transmutação ou transvaloração de todos os valores. Há portanto uma vontade de renovar as valorações dominantes e vigentes, e é o que chama de transmutação ou -mais literalmente- transvaloração de todos os valores. Como vêem há uma vontade de renovação, de transformação, de mudança de sentido no quadro das idéias e na visão geral da vida.


Por outro lado há uma crítica do cristianismo, do ponto de vista do que ele chama "o ressentimento". O ressentimento é um conceito muito importante em Nietzsche e ele acredita que o cristianismo é uma atitude ressentida: é a atitude do homem que é débil e acaba por aceitar a submissão, a debilidade ou a piedade; que aspira a uma espécie de aceitação dos fortes. E isto faz com que ele veja o cristianismo como uma forma de ressentimento.


Max Scheler repensou este tema muito mais tarde -trinta anos depois da morte de Nietzsche-. e escreveu um livro muitíssimo interessante, O ressentimento e a Moral, e ele justamente nega que o cristianismo seja uma forma de ressentimento. Isto lhe parece inaceitável, porque ele tem uma idéia de ressentimento diferente da de Nietzsche, e acho que mais justa, mais adequada. Para Max Scheler, o ressentimento é a negação dos valores, pela inversão dos valores. Lembrem, noutro dia aludíamos à doutrina do valor (a Werttheorie) que está sobretudo realizada por Max Scheler e por Nicolai Hartmann. E os dois pensadores tratam de fazer uma moral de certo modo contraposta à kantiana, ainda que conserve a característica fundamenal de Kant, que é a autonomia: uma moral que emane do sujeito, do próprio sujeito, que não seja heterônoma, que não seja uma norma ditada por alguém que não o próprio sujeito.


Max Scheler pretende conservar esta atitude de autonomia, mas aceitando ao mesmo tempo -o que em Kant não era possível- uma moral com conteúdo, uma moral que diga o que é que se deve fazer.


Lembrem como em Kant a moral é formal: ele busca um imperativo categórico, que mande sem restrição, incondicionalmente. Sempre que existe um conteúdo, existe uma condição, que alguém pode não querer cumprir; se se diz, por exemplo:"não coma tais coisas porque vão te fazer mal", alguém pode contestar: "É que não me importo que me façam mal...".


O preço que Kant tem que pagar por essa autonomia da vontade é seu caráter meramente formal, porque não vai integrar conteúdos concretos, mas o como, por que motivo -por que máxima, dirá Kant- fazemos o que fazemos. Por isso o famoso livro de Max Scheler é uma Ética Material dos Valores, ele busca a ética material, a ética que tem conteúdo e o conteúdo consiste na realização dos valores.


Pois bem, o contrário da moral, a forma suprema de atitude não moral ou anti-moral, é precisamente o ressentimento, que consiste na negação dos valores. Na negação dos valores ou na sua inversão. Suponham que alguém não realiza valores ou se oponha a eles: isto não seria propriamente ressentimento. Ressentimento é negar que aquilo seja valor. A bondade ou a beleza ou a elegância ou a santidade ou qualquer valor é um valor. Ressentido é quem diz: "Não, não, é que não é um valor, não é desejável, não é valioso". Isto, ou também a inversão: ou colocar o valor inferior por cima do superior; ou inverter a direção: tomar o negativo como positivo. Isto é o que Scheler entende por ressentimento, de um modo muito mais agudo e certeiro que a idéia de Nietzsche.


De modo que, como vêem, entre Nietzsche e Scheler se produz uma mudança de orientação, de definição do que são valores e, por conseguinte, do ressentimento. Negação do valor ou inversão dos valores ou alteração da hierarquia objetiva dos valores, isto é ressentimento. Quem diz: "Isto não é um valor, que bobagem! a beleza, a santidade, a bondade... nada disto tem valor", é justamente isto que Max Scheler entende por ressentimento.


Como vêem no fundo da atitude de Nietzsche está latente um equívoco: porque ele vê o cristianismo a partir das formas sociais vigentes na segunda metade do século XIX. Formas que estão ligadas a uma série de concepções que não são propriamente morais - e certamente também não são religiosas- mas são, antes, sociais ou políticas. Considerem por exemplo a democracia. A democracia é uma tendência igualitária, que não afirma o grande homem poderoso, enérgico, afirmativo, criador, mas que supõe uma igualdade e supõe que há uma espécie de normas nas quais todos têm direito, qualquer forma de vida é aceitável, por exemplo o que ele chamará a moral dos escravos.


O elemento de doação, o elemento de generosidade, o elemento de riqueza espiritual que existe no cristianismo -no qual o homem se doa aos outros-, o  conceito capital de amor efusivo do cristianismo, isto, afinal, é o que Nietzsche não vê. O que ele vê é conformismo, submissão dos débeis, frente à exaltação do poder, à vontade de poder. É esta atitude, que de certo modo também se nutre da contraposição -também do gosto de Schopenhauer- entre os dois princípios persas -o bem e o mal, resumindo: o maniqueísmo- a do personagem Zaratustra de Nietzsche.


Como vêem, é uma figura inquietante, que começa rapidamente a mostrar sinais de anormalidade, que termina em loucura pura e simples -e desaparece como escritor- com uma boa dose de megalomania -há um livro dele que se chama O Anticristo e no final de sua vida ele assinava: o Anticristo, o que já significava que estava num terreno de anormalidade psíquica. E isto foi -em grande parte- uma das razões do sucesso de Nietzsche: é evidente que há uma espécie de fascínio que Nietzsche exerce por seu pensamento, em grande parte aforístico, que não costuma ter justificação racional, que é brilhante, fulgurante, mas que não tem esse caráter visual (que me parece tão necessário), que não tem esse elemento de justificação, de prova -no sentido amplo da palavra, não tem que ser necessariamente demonstração- tudo isto afinal falta no pensamento de Nietzsche.


Principalmente depois de sua morte, o impacto da obra de Nietzsche foi muito forte e um pouco ambíguo: em última análise, não é fácil extrair um pensamento filosoficamente justificado, coerente da obra de Nietzsche. Ela está repleta de afirmações valiosas, há nele essa idéia dos valores vitais, a idéia de valor que tem a vida como tal -certas dimensões por exemplo como o prazer, que lhe parece que tem um profundo valor- e que isso tudo reclama eternidade... Tudo isto exerceu uma influência muito forte, muito ampla, não propriamente filosófica, certamente não inteiramente racional, mas que foi, digamos, um grande estimulante.


A obra de Nietzsche passou para uma fase bastante diferente; agora tem sido objeto de estudo, e, em boa medida, de estudo filológico. É curioso como o destino de Nietzsche de certo modo se inverteu: do estímulo da exaltação ao que é escandaloso,  violento, apaixonado, passou-se a um estudo mais analítico de Nietzsche, a uma filiação de seus aforismos, a uma busca do sentido que tem precisamente esse pensamento erudito, porque está cheio de perspectivas valiosas do pensamento grego.


Heidegger escreveu uma obra muito extensa sobre Nietzsche e ele evidentemente tinha um interesse puramente filosófico: é que existem certas intuições em Nietzsche, que lhe parecem muito valiosas e que têm conexão com o que havia de ser a filosofia da existência (e que não é o existencialismo, certamente: são coisas bastante diferentes). Há, talvez uma última consideração propriamente filosófica, propriamente intelectual de Nietzsche, que é aquela feita por Heidegger em -isto é curioso- uma obra muito extensa, na qual lhe dedicou uma atenção surpreendente, porque a obra de Heidegger não se parece muito com a obra de Nietzsche, mas ele está presente em Heidegger que sente um interesse permanente por ele, retorna a ele, ainda que haja, evidentemente, diferenças muito grandes.


É interessante quando se considera um grande filósofo -como é o caso de Heidegger- examinar suas raízes, de onde vêm? É evidente que vêm de Kierkgaard, vêm dos idealistas alemães, vêm -muito mais do que parece- de Dilthey...


E é curioso como uma coisa são as raízes e outra coisa é a planta que delas brota. E -é um problema capital da historia do pensamento- o problema das raízes. Às vezes há uma inversão profunda. Às vezes há um autor que serve de estímulo e que conduz ao sentido contrário, outras vezes o influxo permanece soterrado, por baixo de uma superfície que aponta em outro sentido...


É o que acontece, evidentemente, com Husserl. Estou falando de filósofos sobre os quais vamos discutir nos próximos dias. É evidente que Heidegger é o principal discípulo de Husserl. E -como veremos- há um momento em que Husserl romperá com seus melhores discípulos -com Max Scheler, com Heidegger e com outros...- vai contrapor-se a eles, vai renegá-los de alguma forma. E o mais curioso destes casos é que Husserl, nas mãos dos fenomenólogos atuais, vai experimentar uma mudança de orientação e Husserl será considerado -nestes últimos decênios- como sendo o contrário do que ele afirmava ser, precisamente no ponto pelo qual renegou seus discípulos...


E é curioso como hoje há uma tendência, muito especialmente na França, que é atribuir a Husserl aquilo que ele combateu durante a maior parte de sua vida: precisamente a eliminação da redução fenomenológica, que para ele era ponto decisivo e capital...


Como vêem as diferentes raízes de que lhes falava vão se entrelaçando, e às vezes apresentam mudanças que podem ser quase uma inversão de seu sentido original. E é curioso como nos filósofos que estamos considerando há profundas mudanças de atitude.


Nos próximos dias passaremos justamente ao estudo de Dilthey e Husserl.


 

Agostinho


Agostinho



(Edição - em que procuramos manter o estilo oral - de conferência de
Julián Marías, que, como se sabe, não se vale de texto escrito.
Conferência do curso “Los estilos de la Filosofía”, Madrid, 1999/2000.
Edição: Renato José de Moraes. Tradução: Ho Yeh Chia - http://www.hottopos.com)

 


Julián Marías


 


Santo Agostinho nasceu em 354 e morreu em 431; são três séculos que o separam daquele outro filósofo de quem já falamos outro dia, Sêneca. Porém não se trata só de distância temporal, mas também de um novo estilo completamente diferente. Em Santo Agostinho, encontraremos uma etapa nova da filosofia. Falamos até agora do pensamento grego, e acrescentamos alguma coisa que está em latim, mas dentro da área do pensamento helênico: Sêneca. E com isso termina uma grande etapa, a primeira etapa do pensamento filosófico, centrada no problema da mudança, do movimento, kinesis em grego, mutação, que faz com que as coisas sejam ou não sejam, cheguem a ser e deixem de ser, mudem de quantidade, de qualidade... Enfim, o problema da instabilidade do real. Como lembram, este era o grande problema, que se trata de superar mediante a noção de ser, de ente, ón, de Parmênides, em conflito com a outra grande idéia grega: a natureza, a physis, que é justamente mudança, variação. As coisas estão ameaçadas pela mudança, pela variação, e trata-se de buscar aquilo que verdadeiramente é, que é o que é, se possível, de modo permanente. Este é o grande problema central do pensamento antigo.


Mas agora vamos nos encontrar com uma situação radicalmente diferente. Santo Agostinho foi o primeiro grande filósofo cristão. É evidente que tinha havido preocupação filosófica entre os cristãos nos primeiros séculos, que é o que se chama Patrística, a obra dos Padres da Igreja, que era, antes de tudo, teológica, religiosa, mas sem dúvida com uma componente, com uma vertente filosófica. Mas o primeiro grande filósofo, o primeiro criador filosófico dentro do cristianismo, foi Santo Agostinho.


E assim sendo, a filosofia mudou totalmente, porque o problema agora já é outro, o cristianismo introduz algo muito mais radical do que a mudança, a variação, a kinesis helênica. O cristão pensa que o mundo foi criado, a idéia de criação é alheia ao pensamento grego. Os gregos, olharão a natureza, a physis, e vão procurar explicá-la, farão cosmogonias, para explicar a origem do mundo, mas a idéia de criação é alheia ao pensamento grego. Existe inclusive um caso particularmente elucidador que é o de Plotino, o grande pensador neoplatônico, que com certeza recebeu influências cristãs. Essa influência levou-o a pensar algo que tem certa analogia com a idéia de criação: é o que ele chamará de emanação. Chamará o princípio capital de Uno, mais ou menos o equivalente à divindade, produzindo todo o restante por emanação. Há muitas metáforas, há uma série de imagens, por exemplo, a de uma luz que vai iluminando, que vai se difundindo até que acaba na névoa. Há diferentes formas de entender isso, mas o fundamental é que a emanação é a produção de tudo o que não é o Uno a partir do Uno, que emana dele.


Este é o conceito de emanação, que não é criação. Já o cristianismo afirma a criação: no princípio Deus criou o céu e a terra, e criou-os do nada: não de si próprio, não é a emanação, não é a fabricação do mundo com uma matéria prima já existente; e sim que Deus põe em existência uma realidade nova, diferente d’Ele, por amor efusivo, esse é, digamos, o motivo da ação criadora de Deus, e evidentemente está ameaçado pelo nada, isto é, o problema está em que poderia não haver nada. Não é a mudança de uma coisa para outra, não é o problema da kinesis grega, mas algo bem mais radical: o real está ameaçado pelo nada, poderia não haver nada. E Deus pôs o mundo em existência.


Isso com certeza é um grau de radicalidade maior que o que se dá no pensamento grego, ou seja, o pensamento grego parte do pressuposto de que as coisas já estão aí. Uma pergunta crucial: por que há algo, e não somente o nada? É a formulação que Leibniz fará, e mais tarde Unamuno, e em terceiro lugar, Heidegger. Em geral, Unamuno é esquecido, mas ele diz isto e muito energicamente.


Primeiramente isso corresponde à atitude que se iniciou com o cristianismo, no qual o problema radical é justamente a realidade da criatura e do Criador. Não se esqueçam de que é problemático empregarmos – e durante toda a História se emprega – a palavra “ser” aplicada a Deus e à realidade criada – às coisas, aos homens, aos astros, a tudo o que encontramos. Porque ser criador é radicalmente diferente de ser criatura. Pode-se aplicar a palavra “ser” também a Deus, os senhores lembrem como dizia Aristóteles “o ser se diz de muitas maneiras” (depois concretiza em quatro maneiras), e há ainda o problema da analogia do ente: o ente se diz de muitas maneiras, mas todas têm uma referência comum, ele vai encontrar precisamente o fundamento da analogia na idéia de substância, da ousia. Ora, falamos do ser criatura, e do ser criador, do ser de Deus, a analogia – se é que há a analogia – é enorme, é de um grau de intensidade muito maior que a analogia que existe entre as diferentes formas do ser, digamos, criado (que para Aristóteles não é criado).


Como podem ver, estabelecem-se aqui problemas sumamente graves, problemas muito delicados. Pois bem, Agostinho foi o primeiro filósofo que assume o embasamento geral do cristianismo, que faz uma filosofia cristã (quando se fala de filosofia cristã, não quer dizer que a filosofia cristã esteja determinada, não há nenhuma filosofia que seja cristã nesse sentido, o que ocorre é que pode haver várias filosofias que sejam cristãs, pelo menos podendo ser conciliáveis com o cristianismo. Eu, quando se discutia sobre filosofia cristã, dizia sempre: filosofia cristã é a filosofia dos cristãos enquanto tais).


O cristão tem uma visão da realidade condicionada por sua condição de cristão, e assim, vê coisas que os outros não vêem, interessa-se por questões e problemas que os outros não se interessam. E naturalmente dessa situação, dessa instalação do cristianismo pode nascer precisamente uma filosofia, ou uma outra, ou uma terceira ainda. Há muitas filosofias feitas por cristãos como tais, que nascem da situação em que se encontram, da maneira de ver o real que o cristão tem. E são filosofias cristãs, e podem ser várias, e bem diferentes uma da outra, por que não?


O primeiro grande filósofo, o primeiro filósofo criativo que assume esses pressupostos, que partiu do cristianismo, foi Santo Agostinho. Mas as coisas não são assim tão simples, porque Santo Agostinho não começou sendo cristão. Nasceu no Norte da África, perto de Cartago. Seu pai era pagão, sua mãe era cristã, e depois foi canonizada: Santa Mônica. Santo Agostinho foi pagão durante muitos anos; teve um momento inclusive em que se aproximou das Escrituras, mas encontrou algo pouco interessante e superficial, e não se interessou, não se tornou cristão. O que tinha era uma adesão muito entusiasmada à doutrina de Manes, ao maniqueísmo. Manes foi uma figura primariamente religiosa, muito complexa, muito complicada. Viajou por diferentes lugares, teve uma vida muito agitada, recolheu elementos de muitas doutrinas, dentre elas o cristianismo. De certo modo poderia ter sido uma das muitas heresias do cristianismo que floresceram na época, mas teve sobretudo uma influência da religião de Zoroastro, da religião que se estabeleceu principalmente na Pérsia, e que era um dualismo, um dualismo energicamente afirmado entre o bem e o mal, a luz e as trevas, Deus e o diabo. Esta dualidade, para Manes, é insuperável. Isso dá, digamos, uma estrutura profundamente dramática à questão do real, o que emocionou Agostinho, Aurélio Agostinho, como se chamava.


E viveu uma fase bastante longa com essa convicção, digamos, muito dramática do real, com esta impressão conflitante da luta do bem e do mal; isto deixou uma marca que se fará notar em sua teologia, mais que em sua filosofia. Na teologia, a perspectiva desse caráter dramático não é alheia ao cristianismo; para o cristão, a vida humana tem uma desenlace, isto é, a possibilidade de salvação ou de condenação é uma verdade. O fato de que agora estejam tentando esquecer e liquidar isso é um erro absurdo. Mas, em última análise, o cristianismo naturalmente afirma a infinita superioridade de Deus; por conseguinte, em última instância, o bem é a realidade suprema, e será sempre triunfante. De modo que há evidentemente um caráter dramático, de maneira tal que o desenlace está aberto às duas possibilidades: de salvação ou de condenação. Como podem ver, a atração exercida por Manes é justificável, é compreensível.


Agostinho continuava – estava na Itália: em Roma, e depois em Milão – sem ainda ser cristão, mas seguia as orações e as homilias do bispo Santo Ambrósio, uma figura muito importante da Igreja naquela época. E Agostinho teve um momento de crise, foi quando ouviu uma voz, uma voz de criança que lhe disse: Tolle, lege, toma e lê. Então voltou às Escrituras, abriu o Novo Testamento, encontrou uma passagem, leu e isto lhe causou uma impressão muito profunda, e teve uma forte crise, e daí se aproximou do cristianismo. Mas ainda demorou algum tempo para ser plenamente cristão, quis se batizar, e mais tarde acabará sendo o bispo de Hipona e uma grande figura da Igreja. Viveu em um desses territórios romanizados, cristianizados, que depois foram cobertos pela grande onda islâmica e deixaram de ser cristãos e passaram a ser países de língua e de cultura árabe, de religião islâmica. Mas nesse mo- mento era a grande figura da Igreja do Norte da África, mais precisamente de Hipona.


Portanto, como os senhores podem ver, houve uma evolução, era um homem que tinha sido pagão, que viu o mundo com olhos pagãos, que viveu no império romano tardio, num momento de profunda crise: a pressão dos bárbaros já ameaçava a destruição de Roma. Viu o mundo com olhos pagãos, foi o último grande homem an- tigo. Mas ao mesmo tempo foi o primeiro grande pensador, o primeiro grande filósofo cristão, que anunciará uma nova era, uma nova época. O contexto histórico de Santo Agostinho é único, absolutamente extraordinária, e, junto com sua personalidade forte e apaixonada, reflete-se em seu pensamento. Era além do mais um escritor esplêndido, a obra de Santo Agostinho, muito copiosa, é extremamente importante.


Mas naturalmente o que nos interessa aqui é ver como ele viveu essa situação. Ele sente aquela atitude típica de convertido. Há um texto de Santo Agostinho muito expressivo: Sero te amavi, pulchritudo tam antiqua et tam nova – “tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova”. Ele tinha consciência de ter amado tarde a Deus, descobriu-o tarde, converteu-se sendo já um homem adulto. Ou seja, é uma atitude de um homem que está, repito, saindo de uma forma de vida, de uma época histórica, e entrando em outra. Essa atitude visceral de súplica é, em Santo Agostinho, fundamental. É ela que o faz descobrir, e é afinal a grande descoberta de Santo Agostinho: a intimidade (o homem grego mal conhecia a intimidade; é claro que houve o oráculo de Delfos, que disse gnothi s’auton “conhece-te a ti mesmo”, isso estará em Sócrates, e aparecerá também em Platão e em Aristóteles; sim, mas não era ainda... inclusive, os gregos raramente diziam eu; diziam nós).


A grande descoberta, a maior, de Santo Agostinho é a intimidade. E quando ele se questiona, diz: Deum et animam scire cupio – quero conhecer a Deus e à alma. Nihil aliud, nada mais, absolutamente nada mais. É uma sentença que um grego jamais poderia empregar. A alma é, em última análise, a grande descoberta de Agostinho, a alma entendida como intimidade. E fala justamente do espiritual. Espiritual não quer dizer não-material; há uma tendência muito freqüente de entender o espiritual como aquilo que não é material; e não é disso que se trata, mas de algo muito importante: espiritual é aquela realidade que é capaz de entrar em si mesma, o poder entrar em si mesmo é o que dá a condição de espiritual, não a não-materialidade. A insistência no imaterial ocultou o que é essencial, que é precisamente a capacidade de entrar em si mesmo.


Por isso Santo Agostinho dirá: não vá fora, entra em ti mesmo: no homem interior habita a verdade: Noli foras ire, in teipsum redi: in interiore homine habitat veritas. Essas palavras são de uma enorme relevância, são até de um extraordinário valor literário. É disso que se trata: do homem interior. A descoberta é a interioridade, a intimidade do homem. E é justamente Santo Agostinho quem vai perceber que quando o homem fica apenas nas coisas exteriores, esvazia-se de si mesmo. Quando entra em si mesmo, quando se recolhe a sua intimidade, quando penetra precisamente naquilo que é o homem interior, o mundo interior – naturalmente existe um mundo exterior também, mas o decisivo é o mundo interior –, é justamente aí que Deus se encontra. É aí que se pode encontrá-Lo, e não nas coisas, não imediata-mente nas coisas. Primariamente, por experiência, em algo que é justamente sua imagem. Para Santo Agostinho é preciso levar a sério que o homem é imago Dei, imagem de Deus. É evidente que para encontrar a Deus, o primeiro passo, e o mais adequado, será buscar sua imagem, que é o homem como intimidade, o homem interior.


Isso é o principal. E toda sua obra terá esse caráter. Um dos livros capitais é As confissões, que num certo sentido é o mais importante. Então, o que são essas Confissões? É um livro que não existe no mundo antigo, não há nada equivalente. Se os senhores quiserem algo que poderia ter uma remota semelhança, seriam as Meditações ou Reflexões, de Marco Aurélio. Mas não é um livro de intimidade, é um livro de recordações, um livro de gratidão, ele diz o que deve aos antepassados, aos professores... Essa entrada na intimidade, no mais profundo de si mesmo, em confissão – a palavra é confissão – é uma autobiografia. Esse é precisamente o pensamento de Santo Agostinho: consiste primariamente em mostrar, em descobrir sua própria intimidade. Ele exterioriza em seu livro, em uma manifestação oral, o homem interior, sua própria intimidade. Essa é a grande descoberta, que começa com ele, e naturalmente depois será uma aquisição da humanidade.


É interessante ver como a humanidade vai adquirindo coisas. Já vimos que adquirimos tantas coisas com os gregos. Com o Santo Agostinho a humanidade adquire o sentido da intimidade, o sentido do que é o homem interior, a possibilidade de entrar em si mesmo e aí buscar precisamente a Deus. Por isso ele tem fórmulas brilhantes, fórmulas de pensamento religioso e ao mesmo tempo filosófico. Como quando diz: credo ut intelligam, creio para entender. A fé, justamente para entender. Os senhores sabem que o cristianismo é uma religião teológica – outras religiões não são teológicas – o cristianismo é um conhecer a Deus: quem é, como é... Portanto, requer a compreensão. Um seguidor de Santo Agostinho, Santo Anselmo, fala da operosa fides e da otiosa fides: a fé que não procura entender é uma fé ociosa. A verdadeira fé é uma fé operante, viva, procura compreender. Credo ut intelligam, creio para entender; fides quaerens intelectum, a fé que procura a inteligência. Portanto, em Agostinho, a grande descoberta foi esta, de ver o mundo e ver a realidade na perspectiva da intimidade. Do ponto de vista portanto de quem eu sou: nec ego ipse capio totum, quod sum, nem eu mesmo compreendo tudo aquilo que sou. É uma realidade que não acaba de se manifestar, que é algo no qual sempre se pode aprofundar, que é preciso ir mais além, e por isso a forma de se descobrir é precisamente contá-lo, fazer uma autobiografia, uma confissão, pois é nela que aparecerão precisamente as visões da realidade, da realidade que se basicamente é dele, de Agostinho, é também, do homem em geral, e por meio dele dá acesso a Deus. A Deus dedicará outro livro fundamental, que num certo sentido é mais o importante: o De Trinitate, sobre a Trindade. E há um terceiro grande livro, o extraordinário De civitate Dei, que é o livro no qual levanta o problema da cidade de Deus e da cidade terrena: no momento da crise do Império Romano, ameaçado pelos bárbaros – por Alarico – que está em plena crise, e que é uma realidade deficiente do ponto de vista cristão, mas grandiosa, extraordinária...


O pensamento de Santo Agostinho tem uma visão de realidade inteiramente nova. Por isso falo de outro estilo de fazer filosofia, e de um profundo dramatismo. O pensamento de Santo Agostinho é profundamente comovente, porque, além do mais, possui um valor literário extraordinário: Agostinho foi um dos maiores escritores da língua latina.


Curiosamente, esse entrar em si mesmo, essa relação com a intimidade, o levará à superação do ceticismo. Lembrem que a Academia platônica perdeu seu vigor criador, metafísico, depois de Platão, mas continuava existindo e era uma escola de céticos: os acadêmicos. Ele escreveu um tratado contra os acadêmicos, contra os platonizantes, que não era o mesmo que platonismo. Pois bem, é curioso como ele se opõe justamente a esse ceticismo dominante na Academia, e é extremamente interessante que ele faça um apelo à evidência, e portanto, ao pensamento: eu penso; eu posso errar; posso me enganar; mas não posso duvidar de que existo, porque se me engano então existo, porque só existindo é que posso me enganar. Isto é, eu não posso duvidar precisamente porque é evidente minha realidade pensante.


Considerem que isso é exatamente – em termos muito parecidos, embora com outros pressupostos, com um alcance diferente – o que será o núcleo do pensamento de Descartes. Cogito, ergo sum, penso, logo existo. Sou uma res cogitans, sou uma coisa que pensa. E é curioso que foi precisamente com Descartes é que iniciará outra grande época do pensamento. Se dividirmos o pensamento filosófico em grandes épocas, teremos a grega, com sua prolongação romana (que não é original, depende do pensamento grego). Depois vem o pensamento cristão, que começa em forma plena com Santo Agostinho, e que irá durar até que aparece o pensamento moderno, o idealismo, a doutrina de Descartes. É curioso que justamente o grande momento inicial do cogito, a operação da evidência, alcançar o que é absolutamente evidente, um fundamento que não só não seja duvidoso, mas também indubitável, algo do qual não se possa duvidar, justamente porque está na própria evidência do pensamento: palavras muito parecidas às de Agostinho em De civitate Dei.


Outra coincidência curiosa: o livro fundacional da filosofia moderna é o Discurso do método, de Descartes, que é também uma autobiografia. É, mais ou menos, um livro autobiográfico, não é um tratado, não é uma exposição de tese, é um relato da própria vida de Descartes. Muito mais curto que as Confissões de Santo Agostinho, escrito em francês, e é justamente uma narração, uma exposição de sua própria vida, apoiando-se em um argumento, que é o cogito, que apareceu de forma diferente, com propósito diferente, mas com um apelo à evidência radical, como em Santo Agostinho.


Com isso se diz que a filosofia com a qual se inicia uma nova época, a grande época da filosofia moderna, está assentada, está condicionada pelo agostinismo em dois sentidos: na relação com a evidência do pensamento, por um lado, e o caráter autobiográfico, narrativo, porque expositivo da própria vida nas duas grandes obras: as Confissões e o Discurso do método. Vejam, isso é bem surpreendente.


Há ainda uma coisa muito importante: Santo Agostinho iniciou esse estilo de filosofar, que iniciou uma nova etapa condicionada pelo cristianismo como tal, e que terá uma vigência absolutamente espantosa. Santo Agostinho morreu em 430, e foi a grande figura que dominou todo o pensamento cristão, absolutamente todo, até mil e duzentos e tanto, até bem avançado o século XIII.


Durante oito séculos, Santo Agostinho foi a maior figura dominadora do pensamento cristão: todos recorrem a ele, todos o respeitam. Isso tem uma importância particular, porque, claro, temos esse conceito tão usado por Ortega, e também por mim, que é de vigência, que é o vigor. Têm vigência as coisas que devemos ter em conta. Se querem saber se uma determinada realidade de nossa época tem vigência ou não, é muito fácil fazer o teste: se é preciso contar com ela, então tem vigência. Se podemos ignorá-la, se podemos, por exemplo, não opinar sobre ela; então ela não tem vigência. Pois bem, se consideram o pensamento moderno, a literatura, as formas estilísticas, verão que têm um certo período de vigência. Se uma forma intelectual, ou artística, ou literária tem vigência de séculos, parece algo extraordinário. Santo Agostinho tem oito séculos de vigência; isso é absolutamente espantoso.


Na próxima conferência, vamos nos encontrar com São Tomás de Aquino, que questiona a vigência do agostinismo: embora de certo modo o use, e terá outra longa vigência, e também terá seus problemas e, naturalmente, teremos que analisá-los. Mas vejam como é realmente extraordinário, ter uma fecundidade quase inesgotável, o fato de que Santo Agostinho, com suas proposta nova, com esse novo estilo de pensar que inaugura, que nasceu precisamente de uma visão dupla: por um lado viu o mundo com olhos antigos, foi o grande último homem antigo, mas ao mesmo tempo foi o primeiro pensador que parte da situação criada pelo cristianismo, condicionada por ele, que vê portanto o mundo dessas duas maneiras. Participou da visão pagã, da tentação maniquéia, a que cedeu, evidentemente, com grande entusiasmo – em Santo Agostinho, tudo é especialmente forte – depois é, naturalmente, de um cristianismo essencial, apaixonado.


Essa idéia da intimidade, da personalidade, o levará a dar, por exemplo, um papel extraordinário ao amor, inclusive filosoficamente. Ele diz que se a sabedoria é Deus, ou se Deus é a sabedoria, o verdadeiro filósofo é amante de Deus: si sapientia Deus est..., verus philosophus est amator Dei. Deus é sabedoria, a filosofia é amor à sabedoria, como já o dizia Aristóteles. Então, para o cristão, o verdadeiro filósofo é aquele que ama Deus. Confunde-se o amor à sabedoria com o amor a Deus. E há um outro texto dele também extremamente enérgico: non intratur in veritatem, nisi per caritatem – só se entra na verdade, pela caridade, pelo amor.


Isto naturalmente leva à afirmação da liberdade. Reparem que essa descoberta do homem interior, do homem íntimo, da capacidade que tem, pela condição espiritual, de entrar em si mesmo, faz com que o homem seja livre. Sua liberdade é absolutamente fundamental, e, claro, está na própria entranha do cristianismo: “a verdade vos fará livres”. E ele proseguirá: ama et quod vis fac, ama e faze o que queiras, sentença extremamente enérgica de Santo Agostinho. Faze o que queiras. Se repararmos bem, não está tão longe de Kant.


Ama e faze o que queiras; o que queiras, não o capricho, não o teu bel-prazer, mas sim o que possas querer, o que possas verdadeiramente querer. Isso está a dois passos da idéia de Kant, para quem o único bem é a boa vontade. É a única coisa que é verdadeiramente valioso para Kant: o que podemos querer. Não os sentimentos, não o capricho, não, não... mas o que possas realmente querer. Ama e faze o que queiras. Se fazes realmente por amor, podes fazer o que queiras. O que possas querer realmente, o que possas querer amorosamente, por amor. Naturalmente, se se suprime o “ama”, destrói-se a frase, como é natural. Não é “faze o que queiras”, o capricho, ou o que te agrade, ou o que te convenha; não, não, pelo contrário.


Se falarmos de estilos na filosofia, este é um estilo totalmente novo. A palavra filosofia, desde Santo Agostinho, quer dizer outra coisa. Os senhores diriam: mas isso estava claro? Não, é muito raro que as coisas estejam claras. Se olharmos as coisas que estão aí, que foram conhecidas, que foram expressas, que foram formuladas, às vezes de modo genial, com um talento como o de Santo Agostinho, veremos que muitas vezes passa-se à margem delas. Dizia Aristóteles que a sabedoria é descoberta e depois esquecida. Sim, e não somente a sabedoria em geral, mas em cada época. Seria interessante explorar isso, sei lá, poder-se-ia escrever um livro extraordinário, só sobre os esquecimentos do homem, sobre as coisas que foram vistas, compreendidas, entendidas, que uma vez o homem as conquistou, e depois as abandonou, as esqueceu...


É curioso como a mudança de pensamento, que poderia incluir um acréscimo, um acréscimo constante, uma aquisição, uma incorporação de novas visões, de novas realidades, a inclusão de verdades novas... raramente é assim. Quando aparece algo novo, quase sempre aparece com algumas perdas, com esquecimentos, com falta de algo que já tinha sido conquistado, mas que em certo momento se debilitou, perdeu o vigor, perdeu a vigência e assim foi abandonado.


Convém que neste curso, que precisamente trata dos estilos do pensamento, olhemos para trás com muita freqüência. Não se esqueçam da brevíssima vigência do pensamento mais genial, talvez o maior de toda a história da filosofia, que é o de Platão e de Aristóteles. Como filósofos, provavelmente sejam os dois cumes da história da filosofia inteira. Nós lhes devemos uma proporção quase inimaginável do que possuímos, e no entanto, os senhores lembrem-se de como logo após a morte de Platão, e depois logo após a morte de Aristóteles, desapareceu do horizonte essa forma de pensamento, esses dois cumes extraordinários. Partiu-se para um outro nível. Há muito tempo, Ortega disse: a filosofia é questão de nível. Surpreendi-me quando ouvi essa frase, mas agora vejo que tem um imenso valor. Efetivamente, a filosofia é questão de nível. E cada filosofia tem o seu nível, e esse nível não é que esteja dado, chega-se a ele, e pode-se perdê-lo. E, de fato, perde-se uma e outra vez. E hoje falamos justamente de um dos cumes do pensamento, um cume que teve uma longa e verdadeira vigência.


Se a capacidade de visão, se a capacidade de inovação de Santo Agostinho tivesse sido conservada ao longo dos séculos, aonde teria chegado o pensamento, esse pensamento agostiniano, fiel a Santo Agostinho? Às vezes passivamente fiel, talvez sem o impulso criador e inovador que Agostinho tinha, mas foi conservado com bastante fidelidade, com algumas perdas e com certo distanciamento, talvez com esquecimento daquilo que é mais criador, daquilo que era verdadeiramente o fermento de Santo Agostinho.


Agora, temos que passar para outro grande santo, para nos encontrarmos no século XIII com outra brilhante figura, São Tomás de Aquino.


 

Aristóteles


Aristóteles




(Edição - em que procuramos manter o estilo oral - de conferência de
Julián Marías, que, como se sabe, não se vale de texto escrito.
Conferência do curso “Los estilos de la Filosofía”, Madrid, 1999/2000.
Edição: Renato José de Moraes.  Tradução: Elie Chadarevian/http://www.hottopos.com)

 


Julián Marías


 


Para esta conferência trago esta separata que podem consultar – preço: uma peseta! - “Aristóteles: o saber por excelência – versão e notas de Julián Marías”. É uma publicação que foi feita em Madrid pelos estudantes da Faculdade de Filosofia e Letras em 1935 – depois de Cristo, claro! . Era uma revista que nós estudantes fazíamos - a revista não durou mais que um ano letivo, porque depois veio a guerra civil e tudo se acabou. Havia uma seção que consistia em apresentar alguns textos particularmente interessantes, e eu traduzi os dois primeiros capítulos do livro I da Metafísica de Aristóteles, com uma pequena introdução. Nesta semana encontrei este texto e o trouxe porque é sumamente curioso – além do que, vendia-se à parte da revista, como separata, e custava uma peseta... Claro que o almoço no restaurante da Faculdade custava 2 pesetas ; com vinho 2,30, lembro-me muito bem.


É curioso porque no primeiro parágrafo desta tradução, isto é, nas primeiras linhas da Metafísica, já nos deparamos com o estilo de Aristóteles: “Todos os homens tendem por natureza ao saber. Sinal disto é seu gosto pelas sensações, pois estas, além do proveito que possam ter, agradam por si mesmas, e as da visão mais que as outras. Pois, não só em nossos afazeres, mas também quando não fazemos nada, preferimos o ver, por assim dizer, a todos os demais sentidos. E isso porque pela visão as coisas nos são mais notórias e manifestam-se muitas diferenças”. Este é o primeiro parágrafo da Metafísica, e os senhores verão como, afinal, nele já aparece o estilo de Aristóteles.


Aristóteles, era, como sabem, procedente da Macedônia, de Estagira. Lembro--me, uma vez, em uma carta, Ortega dizia-me: “Nosso mestre, claro, é de Estagira”. Nasceu em Estagira em 384, e morreu em Calcis em 322. Ou seja, ele viveu 64 anos: uma vida normal para a época, nem breve, mas tampouco longeva como os 80 anos de Platão. Mudou-se para Atenas quando era muito jovem, aos 18 anos, e esteve na Academia platônica.


Parece-me que por uns 19 anos permaneceu na Academia como discípulo de Platão e seu colaborador, e estou certo de que a influência mútua – insisto, mútua – foi muito grande. Imaginem o que devem ter conversado Platão e Aristóteles durante tantos anos... Com a morte de Platão, encarregou-se da direção da Academia uma figura de segunda ou terceira linha, Espeusipo, sem grande relevo, e Aristóteles abandonou a Academia de Atenas.


Ele foi, como sabem, e é uma coisa muito importante, mestre de Alexandre Magno. Mas, depois voltou a Atenas, passados muitos anos voltou a Atenas e fundou sua própria escola: o Liceu. Os senhores sabem que a tradição diz que ali se ensinava passeando, mestre e discípulos, por isso chamavam-nos peripatéticos, e chama-se Peripato à escola de Aristóteles.


Há um fato muito importante que é preciso desenvolver desde o começo: o destino do aristotelismo foi bastante estranho. Depois da morte de Aristóteles, ocorre um certo abandono do pensamento filosófico no sentido que Platão e ele haviam ensinado, e há até uma substituição deste pensamento rigorosamente metafísico, enormemente criador, por uma série de escolas que ocuparão o espaço da filosofia platônica e aristotélica, os chamados socráticos menores, as escolas que floresceram depois da morte de Aristóteles e que, afinal, representaram um nível de criação, de tensão filosófica muito diferente. A própria academia acaba por converter-se num centro de ceticismo, e a própria palavra “acadêmicos” passa a significar céticos; “Contra Academicos” é uma obra contra os céticos. E no seu prosseguimento, o Liceu passa por mãos muito pouco criativas, insistindo num pensamento informativo, bastante científico, e é curioso o enorme abandono de Aristóteles, que vai ter uma influência imensa muitos séculos depois. 


Não esqueçam que Aristóteles vai ter uma influência extraordinária na Idade Média. Ou seja, na Idade Média, quando parte dos textos aristotélicos passam através dos persas e árabes ao continente europeu - quando, por exemplo, Averróes faz os comentários, Averróes, “che’l gran comento feo” diz Dante, “fez o grande comentário”. Ou seja, há uma influência que depois passará normalmente aos cristãos, oportuna-mente falaremos da incorporação do aristotelismo ao pensamento cristão medieval, especialmente e sobre tudo em Santo Tomás, que não sabia grego, que não conheceu os textos gregos... Isto é muito importante, no ocidente cristão Aristóteles não é lido em grego, ele é lido na tradução de Guilherme de Moerbecke, de um modo indireto. Essa é uma coisa sumamente curiosa; falaremos disso oportunamente.


O impulso aristotélico foi imenso, desde a Idade Média, e depois ocorre - já adianto um pouco o que vai acontecer - que desde o Humanismo, e depois na filosofia moderna – de Descartes, dos séculos XVI e XVII – há uma reação anti-escolástica que envolve Aristóteles. O fato, afinal, é que Aristóteles passa por versões indiretas – não é lido normalmente, muito pouco, e quase sempre através de traduções ao latim principalmente. E é curioso como o Aristóteles escolástico não chega a ser plenamente Aristóteles e a reação anti-aristotélica dos modernos, dos humanistas em diante, vai ser um elemento de esterilização também.


É curioso ver a utilização escolástica, no sentido literal da palavra, no sentido que Ortega dava a todo o escolaticismo, ou seja, uma doutrina que atua, e que é recebida de outra época, de outra situação, e que tem sua influência em circunstâncias completamente distintas. A isso, como forma mental, como forma de transmissão de pensamento, Ortega chamava de escolaticismo, qualquer tipo de escolástica. E isto ocorreu essencialmente com Aristóteles. Aristóteles não foi lido em si mesmo diretamente em seu texto original, até o século XIX.


Aristóteles insiste em que todos os homens tendem por natureza ao saber, diz, “por natureza”. Crê que há uma disposição natural, fundamental, constante, em todos os homens. Há, portanto, diríamos, uma vocação natural e profunda do homem ao saber, ao conhecimento. Mas, imediatamente acrescenta que se trata das sensações, ou das percepções, talvez seja melhor dizer as percepções - com uma distinção que a filosofia introduziu depois (ele usa a palavra aísthesis) - e neste gosto pelas percepções, pelas sensações, diz que, preferencialmente, as da vista. E há algo muito interessante: que não somente por sua utilidade, por seu proveito, mas também quando não vamos fazer nada. Ou seja, quando se trata da skholé, a skholé é o ócio. O homem tem ócio e negócio; negotium é a palavra latina contraposta ao ócio. Ou seja, quando se faz algo ou quando não se faz nada; também para o ócio, skholé, daí, aliás, a pala-vra "escola", e a escola é o ócio, etimologicamente é isto. Há, assim, uma predileção pela vista, e ele diz que é porque ela mostra muitas coisas e mostra muitas diferenças.


Nestas poucas linhas, nestas pouquíssimas linhas que acabo de ler, está um pensamento visual. Aristóteles é um grande observador: a vista é justamente, entre todas as vias perceptivas, a mais importante. Porque revela, manifesta muitas coisas, diríamos que nos põe em aletheia, na verdade, e mostra muitas diferenças, permite conhecer a realidade com detalhe. Isto é fundamental, e Aristóteles tem essa função visual, ele foi um grande observador, é um homem de ciência, é um homem que se ocupa das plantas, dos animais, dos fenômenos naturais, que faz Física - uma Física filosófica, naturalmente -, parte dela está no tratado De anima, que forma parte também da natureza. Ou seja, de certo modo é um naturalista. É um homem atento às coisas concretas.


Lembrem que Platão diz que as coisas não são realmente reais, não são verdadeiramente reais. Platão diz que as coisas são sombras das idéias, das idéias que estão num topos ouranios num lugar supraceleste, e as coisas são por participação das idéias, não são portanto verdadeira realidade. Remontamo-nos das coisas sensíveis, perceptíveis, até as almas, as idéias, até chegarmos ao Bem, à Razão. Já do ponto de vista de Aristóteles, trata-se antes de interessar-se imediatamente, diretamente pelas coisas. E naturalmente vai dizer que as idéias estão nas coisas, justamente, e é o que chamará eidos. A palavra eidos é uma das palavras mais fundamentais, eidos é idéia. Pois bem, essa palavra que num texto platônico costuma-se traduzir por idéia, num texto aristotélico, eidos é melhor traduzido por espécie, pois a espécie está realizada na coisa, nas coisas.


É interessante observar como de Platão e de Aristóteles - ou partindo até do velho Parmênides, mas especialmente de Platão e de Aristóteles, e mais ainda de Aristóteles - procedem todas as espécies de conceitos que usamos (recordem como há o ón, o einái...). Mas Aristóteles lança a fundo a questão que vai ser o drama intelectual da filosofia grega; recordem o problema: do que é o ente, ou, que o ente é um, é imóvel, invariável... Por outro lado, há a realidade das coisas, há a mudança, o movimento, a physis, a natureza: isto é capital. Aristóteles dá um passo ontologicamente decisivo: dirá tò òn légetai pollakhôs: o ente se diz de muitas maneiras... E depois especificará as maneiras fundamentais.


Ou seja, há um ser, há um ente, òn, particípio presente do verbo einai, o verbo ser, mas leva em si mesmo a multiplicidade. O passo decisivo da ontologia aristotélica é precisamente este: admitir a unidade - o ente tem sempre um sentido capital, um sentido primordial - e se diz de muitas maneiras - como ele precisará, depois, em quatro maneiras. Ou seja, ele assume o núcleo argumental do pensamento grego - a unidade, a imobilidade, a permanência do ente - e a pluralidade da mudança. Em Aristóteles é essencial a análise da realidade. Ele fará essa análise com todos os conceitos fundamentais.


Pensem, por exemplo, no grande conceito, que ele torna fundamental, que é o conceito de substância. E com substância já começaram a alterar-se as coisas, porque Aristóteles originalmente diz ousía. A palavra ousía quer dizer primariamente os bens, a fortuna, as propriedades de algo. A ousía é o que uma pessoa tem; ela tem por exemplo uma casa e umas terras, umas vacas, isto é sua ousía, fundamentalmente. E precisamente um conceito muito importante, o conceito de liberdade, eleutheria, está ligado a isto, o homem livre é o homem independente, que tem uma ousía, que tem uns certos bens do quais vive, dos quais pode dispor. Esse repertório de possibilidades de quem tem algo, isso é a ousía. Nós usamos esta palavra, em sua versão latina, sub-stantia, que quer dizer o que está debaixo, o que está de pé, debaixo, aquilo que subjaz... Há aí duas palavras gregas, hypostasis e hipokeimenon. Na realidade, a palavra substância é tradução de hipostasis, o que está de pé, embaixo. Aristóteles emprega também a palavra hipokeimenon, o que sub-jaz. Há a substância e o que é subjacente. Subjacente a que? Ao que ocorre, ao que acontece, ao que sobrevem, ao que Aristóteles chama simbebekos, do verbo symbainein, isto é, os acidentes. A substância, dirá Aristóteles, subjaz a seus acidentes. Esta mesa que vemos é retangular, esta mesa é dura, é de tal cor... Predico diferentes atributos da substância, que está subjacente, substante. Essa é fundamentalmente a substância, está naturalmente com acidentes que ela sustenta ou suporta.


O que ocorre é que em Aristóteles o sentido primário não é esse, não é o de ser substrato, ou subjacente, ou substante; não, não: é a riqueza, é a possibilidade, digamos a concreta realidade da substância. A tradução latina, ao que parece, de Cícero, e que passou naturalmente às línguas modernas, debilita afinal o sentido primário da palavra ousía. Isso é capital, e possibilita uma reabilitação enormemente importante na história da filosofia, porque prevaleceu uma tendência de ver a substância como o substante, o que está debaixo de, o que é suporte de acidentes ou propriedades, e assim se elimina o sentido principal, o sentido radical.


Aristóteles igualmente tratou de fazer uma análise de como funciona essa realidade, de como é a realidade. Por exemplo, as distinções que empregamos o tempo todo, não já em filosofia, mas na nossa vida cotidiana: somos aristotélicos numa proporção incrível. A idéia de matéria e forma, hýle e morphe, que parece que se aplica a tudo, são conceitos aristotélicos, que são introduzidos justamente para analisar em que consiste uma substância, o que é uma substância.


Por exemplo, as duas palavras dýnamis e enérgeia. Dýnamis é: possibilidade, potência. Enérgeia é energia: e é curioso que depois foi equiparada ao dinâmico, à dýnamis. Mas em Aristóteles são opostos. Os latinos chamaram de actus a enérgeia; actus, ou seja, atualidade, plena realidade, não potência, não mera potência, não mera possibilidade. Aristóteles interpretará o movimento como a atualidade do possível, ou seja, a atualização da dýnamis, que a dýnamis passe a ser enérgeia. Os conceitos de prática e teoria, que empregamos a todo tempo. Em Aristóteles se distingue a poíesis, que é a fabricação, a produção, tanto faz produzir uma mesa ou um soneto, produz-se algo e neste sentido se é poeta. Mas por outra parte, há o conceito de praxis, que é a ação, o que se age.


Mas, claro, a forma suprema de praxis para Aristóteles, o mais praxis de tudo é a theoria. Há por vezes a pretensão de opor teoria à prática, mas a teoria é o que há de mais prático...: para Aristóteles, é a forma suprema de praxis, é a contemplação, é a visão. E aí aparecem as formas de vida, que terão uma importância enorme no pensamento aristotélico. Há o bios politikós; a vida produtiva, há o bios praktikós; e há a forma suprema, o bios theoretikós, a vida teorética, a vida teórica, que é a mais prática de todas, que consiste precisamente na visão, na contemplação, aqui aparece plenamente aquela idéia visual, da visualidade no pensamento de Aristóteles.


Para Aristóteles isto vai explicar um fenômeno estranho, mas evidente, recordem como os Gregos distinguiam entre a evidência da realidade e a evidência intelectual. A evidência intelectual é a coisa que está diante de nós e que nos obriga a pensar, que nos obriga a pesquisar. Isto é, essa mesa é evidente, aí está, mas podemos entender o que ela é, de que foi feita, do que se compõe, isso não é evidente, deve ser indagado. Mas há a evidência da mesa e isso me obriga precisamente a perguntar-me sobre ela. Porque há esse fenômeno da natureza, a physis, que é justamente a origem do movimento, que as coisas mudem, que as coisas chegam a ser e deixam de ser, mudam de qualidade, mudam de temperatura, todas as mudanças imagináveis. Ou chegam a ser e deixam de ser, que é a forma mais fundamental, mais radical de natureza.


Tudo isto está em Aristóteles e o usamos a todo tempo, não por ser filosofia. Poucos lêem filosofia, mas todos vivemos e todos usamos uma língua que é aristotélica numa altíssima proporção. Gente que não sabe nem quem era Aristóteles, que não conhece seu nome (e certamente não sabe nem uma palavra de grego), emprega justamente o vocabulário e o sistema conceitual de Aristóteles o tempo todo. Nesse sentido, a fecundidade aristotélica é extraordinária. E Aristóteles enfrenta os problemas com uma grande clareza, com um rigor assombroso. Quando se lê Aristóteles, a ele diretamente, a impressão que se tem é de realidade, de estar aproximando-se da realidade, mergulhando nela. Por exemplo, quando Aristóteles fala de substância, diz que substância propriamente são as coisas naturais, são os homens, os animais, as plantas ou suas partes, a terra, a água. E há outras coisas, a mesa, por exemplo, a mesa já não é natureza, é apotekhnes. É algo derivado da técnica: tekhné é arte, a arte de curar, por exemplo, é o nome que se dava à medicina. E então são realidades, são substâncias segundas, não são verdadeiras substâncias.


E Aristóteles, que tem certas incoerências, certas faltas de consistência consigo mesmo, quando vai explicar o mecanismo da substância, ou da mudança, quando vai explicar como uma substância tem hyle e morphé, tem matéria e forma, fala por exemplo da estátua. Na estátua, a matéria é mármore, por exemplo, ou bronze; e a forma é a bela Afrodite, ou o feio Sócrates. Mas, claro, a estátua, segundo Aristóteles, não é uma substância, não é uma verdadeira substância, porque é apotekhnes, é artificial. E quando fala da mudança, da variação, diz por exemplo que se eu enterro uma cama, e a madeira está viva, não se dão camas, dá-se uma árvore, porque justamente é o que está vivo, o que é propriamente substância é a madeira de que está feita a cama, e não a própria cama, que é apotekhnes. O curioso é que precisamente quando vai explicar, quando vai dar exemplos de substâncias e dos mecanismos ontológicos que regulam a realidade da substância, dá exemplos daquilo que não são substâncias, isto é, das substâncias segundas, dos objetos artificiais. Isto é algo muito sério... Eu gostaria de perguntar isto a Aristóteles: por que apresenta estes exemplos? Por que, afinal, quando vai exemplificar e mostrar as operações da substância, recorre ao que segundo ele – precisamente, segundo ele - não são substâncias, não são verdadeiras substâncias?


Aristóteles vai, além disso, fazer a teoria dos graus do saber, e começa pela sensação, que é comum aos animais. Na verdade, alguns animais têm memória, outros não, os que têm memória podem aprender, e há aí um conhecimento superior, que é a experiência, a empeiria. E há também um conhecimento que opera segundo princípios, que é a tékhne, a arte, donde vem a palavra técnica. E há também o conhecimento científico, a episteme, que é o conhecimento da ciência. Mas ele dirá também, que nem tudo se conhece pela episteme, que há a visão noética, recorrendo a um velho conceito que provêm de Anaxágoras, noûs, e dirá que há algo superior à ciência, que é a sophia, a sabedoria, que é episteme kai noûs, ciência e visão, visão noética, com o que se chega ao cume, ao saber supremo, ao saber por excelência.


E isso acompanha os graus do ser. Há um momento, um conceito capital, que vai ter um valor imenso e vai influir depois na teologia cristã de uma maneira extraordinária, que é o conceito de Theos, de Deus. Deus, precisamente é a forma suprema do ente. Quando fala de conhecimento acerca do ente enquanto tal, enquanto ente, a forma suprema do ente é precisamente aquela que é pleno ato, que não é possibilidade, que não é potência, mas realidade plena. E de Deus, Aristóteles dirá precisamente que é noesis noesios, a visão da visão: Deus se vê a Si mesmo, contempla a Si mesmo, consiste precisamente nisso. E assim culmina precisamente essa concepção visual, com a visão que não é, naturalmente, aísthesis, que não é sensação, que não é sensível, mas é justamente a visão que Deus tem de Si mesmo, diríamos, a realidade última, transparência para Si mesmo.


De modo que tenho insistido precisamente no uso habitual desses conceitos aristotélicos, que nos impregnam, de que está impregnada não somente toda nossa cultura ocidental, mas também nossa língua: usamos constantemente o vocabulário aristotélico para nos entendermos. Trata-se de uma influência indireta principalmente, a influência dá-se através do latim em grande parte. Primeiro no mundo romano, não muito, porque Aristóteles não tem grande circulação no mundo romano. Mas principalmente no mundo medieval, que realiza alterações muito profundas, muito fundamentais, e os graus mais profundos da ontologia aristotélica, de certo modo atenuam-se, tornam-se nebulosos, porque passam a estar a serviço de outros propósitos, de outros interesses que são diferentes. Em última análise, a história do aristotelismo é muito complicada, e eu creio que não se pode compreender bem a não ser com uso muito profundo, que ainda não foi empreendido, da razão histórica, e, se se estuda o que aconteceu com Aristóteles, com sua fama, com seu nome, com sua idéias, com o culto a Aristóteles, evidentemente. Não esqueçam, por exemplo, que Santo Tomás o chama simplesmente Philosophus, o Filósofo, o filósofo por excelência. Dessa atitude passa-se – principalmente no Renascimento e depois no século XVIII – a um desprezo a Aristóteles. Aristóteles torna-se a algo arcaico, desprezível, sem importância. Procurar-se-á intensamente, já bem avançado o século XIX, em voltar ao próprio Aristóteles, a ler suas obras, não aos comentários. Então se descobrirá uma dimensão de profundidade extraordinária, que não me atrevo a dizer que esteja conservada. Se tomarmos o pensamento dos últimos 100 ou 150 anos, veremos que até certo ponto o aristotelismo é vacilante é deficiente. Eu creio que faz falta uma profunda imersão em Aristóteles, não para deter-se nele, mas para tê-lo em nós, em sua realidade.


Não esqueçam que Aristóteles é além do mais o criador das disciplinas filosóficas; Aristóteles é o verdadeiro criador da lógica, o Órganon. Órganon quer dizer instrumento, ou seja, o criador de uma série de tratados lógicos que continuam vigentes, dos quais afinal continuamos nutrindo-nos. É que os passos que se deram em lógica além de Aristóteles têm-no como pressuposto, e além do mais são secundários dentro da massa imensa da teoria lógica de Aristóteles. A Física, naturalmente, é uma física filosófica, muito distinta do que se chama física na Idade Moderna, mas afinal a Física tinha sido a de Aristóteles, até Copérnico e Galileu, tinha sido a de Aristóteles substancialmente, com o grau incrível de vigência, muito mais que milenária, que ela teve. E a ética, as várias éticas que Aristóteles escreve: a mais importante é a chamada “Nicomaquea”, a “Ética a Nicômaco”, o nome de seu filho. E a política. Na política, depois dos escritos políticos de Platão – “Político”, a “República”, “As Leis” -, a grande construção sobre tudo intelectual da política tinha sido a Aristotélica, cuja vigência também se manteve – com essas épocas de abandono e de obscuridade que são características do aristotelismo – até muito avançada a época moderna. E, infelizmente, em grande parte se foi esquecida. É evidente que a atualidade que a Política de Aristóteles tem é algo arrebatador, é algo absolutamente assombroso. E a teoria da felicidade, da eudaimonía, está justamente ligada à sabedoria (diríamos com uma tentação de chamá-la intelectualista), no pensamento de Aristóteles. É de uma grande riqueza e profundidade: os textos aristotélicos não são muito extensos, eram sóbrios. A Metafísica de Aristóteles – eu me lembro que Ortega dizia divertidamente que todas as grandes metafísicas são metafísicas de bolso. Evidentemente sim, quase todas cabem num bolso, a Metafísica de Aristóteles, em seu texto grego, na edição normal, cabe no bolso do paletó, não é um grande livro. A densidade, a dificuldade de estudar Aristóteles é a de reter cada frase, é tomá-la a sério. Isso é o que ocorre. Isso evidentemente, umas vezes fez-se, outras não, ele foi parafraseado, diminuído, ligado a coisas que não tinham muito que ver com ele...


Mas - em todo caso - é um estilo visual, é um pensamento visual. Nem toda a filosofia é visual. A maior parte da filosofia não foi feita visualmente, eu digo às vezes, meio de brincadeira, que quando um filósofo diz algo que não está vendo, já deixou de interessar-me: não está vendo. Os senhores lêem, por exemplo, muitos autores que não estão vendo o que dizem, estão raciocinando, estão articulando silogismos..., mas não estão vendo. Esqueceram algo muito importante: e é que evidentemente, as maiores dos silogismos não se pensam, procedem da intuição, de uma visão, que é justamente o que Aristóteles sabe muito bem. Precisamente por isso dirá que a forma suprema do conhecimento, a sabedoria, a sophia, é epistéme kai nous, ciência e visão.


A visão é capital, é justamente o que nos inclina à realidade e nos obriga a trabalhar sobre ela. Mas, se não há esta visão capital, falta o elemento fundamental. Se consideram a história do aristotelismo, verão como isto é paradoxal: fez-se um uso minimamente visual de Aristóteles. A maior parte do que se fez utilizando Aristóteles, em seu nome, desenvolvendo-o, não era visual. Seria importante perguntar por que, por que razões. Em última análise, por conta dos interesses dos que lidavam com ele, além do fato, insisto, de que o conhecimento foi deficiente, indireto e por traduções na maior parte da história. Mas, além disso, o que é que se buscava, o que é que importava: Aristóteles foi utilizado como um instrumento. Há, naturalmente, o uso de sua lógica, que é fantástico. Sim, mas a lógica é simplesmente um instrumento, é um instrumento para buscar a verdade, é um instrumento para o encadeamento das verdades, para inferir umas das outras, isso é importante. É importante, sim, mas não se esqueçam do nous, não se esqueçam dessa visão.


Os senhores dirão: E Platão? Platão sim, mas afinal tem que se afastar do que se vê, tem que se remontar à imaginação das idéias, que não se percebem, que não se vêem. Tem que situar a realidade verdadeira nesse tópos hyper ouránios, nesse lugar supra celeste. Vê-se isso, claramente, já no mito da caverna. As sombras que vemos, e nessa visão, quando aquele que está na caverna se rebela, e sai, fica de imediato cegado pela luz, pelo esplendor da luz.


Como vêem - falamos aqui de estilos de fazer filosofia, e o estilo desse grande platônico, o platônico por excelência, que é Aristóteles, é no entanto diferente do estilo de Platão. E não esqueçamos que vai ser diferente do estilo dos aristotélicos, das várias estirpes de aristotélicos que têm existido.


Ressaltemos o seguinte: se as filosofias são consideradas repertórios de doutrinas, teorias, sistemas de conceitos, teremos uma visão que exclui os estilos, que deixa de fora as atitudes a partir das quais cada filósofo filosofa. O que é problema para eles? O que é verdade para eles? O que é saber, em que se basear? O que quer dizer entender? Com o que se conta? O que é que importa? O que é que se busca? Para além das doutrinas - que como estamos vendo se encadeiam, de certo modo procedem umas das outras, se corrigem, se superam - há algo fundamental que está ligado a cada pessoa, em sua época, em sua língua, em seu país, em suas angústias pessoais, no que realmente necessita saber para viver.


 

Heráclito


Heráclito



(Edição - em que procuramos manter o estilo oral - de conferência de
Julián Marías, que, como se sabe, não se vale de texto escrito.
Conferência do curso “Los estilos de la Filosofía”, Madrid, 1999/2000.
Edição: Jean Lauand.  Tradução: Elie Chadarevian/http://www.hottopos.com)

 


Julián Marías


 


Hoje vamos continuar nosso exame dos estilos da Filosofia - lembrem que na quarta-feira passada falamos de Parmênides. Quero recordar muito brevemente o que era capital e que temos que reter para manter a coerência do curso. Lembrem como Parmênides é - entre os pré-socráticos - o primeiro que chega a uma concepção conceitualmente rigorosa da filosofia.


Lembrem também como aparece o conceito capital, o conceito que vai percorrer toda a filosofia grega e ir além: a idéia do ser em sua forma do particípio presente do verbo einai, on, o que se chamará mais tarde em latim ens, ente. E há outro conceito, o de physis, que apareceu anteriormente: os primeiros escritos pré-socráticos, perdidos, costumavam ter este título geral: Peri Physios, "Sobre a natureza".


Há, além disso, o conceito de via, de caminho, odós, que é primordial no pensamento de Parmênides e que é o que vai dar lugar ao conceito derivado de methodos, método, caminho, via: as vias do ser, do que é; a via da aletheia - outro grande conceito capital - a verdade, o desvelamento, o evidenciamento, a manifestação do real... Há a via impraticável do "não é" e a via - tão estranha - do "é e não é", que é a opinião, outro conceito capital, a doxa, que ele chama "opinião dos mortais", e que levará ao que se chama aparência e então surge outro dilema importante do pensamento grego: aparência e realidade.


Como vêem, há todo um leque de conceitos capitais que são forjados no pensamento de Parmênides e continuarão ao longo de toda a filosofia grega. A descoberta do on é fundamental, do ser como consistência. Lembrem como no uso normal - em nossa língua, por exemplo - as coisas consistem em - por exemplo: a água consiste em uma combinação de hidrogênio e oxigênio - mas a grande criação radical de Parmênides é precisamente deter-se no consistir, a tradução mais profunda de on seria consistência: As coisas consistem !, têm um modo fixo, permanente de ser. O que ocorre é que ele toma isto ao pé da letara: o on é um, é imóvel, é invariável, não muda... Então o conceito de natureza perde o sentido: a natureza consiste precisamente em que as coisas brotam, nascem e crescem, se transformam, se modificam... A kinesis - o movimento, a mudança, que foi o propulsor do pensamento grego -, para Parmênides, não há propriamente movimento: o on é akineton...


Isto leva a uma situação paradoxal que, está claro, Parmênides não pode ocultar: ele dirá que o ente é imóvel, imperecível, ingênito, que não é gerado..., mas evidentemente há mudança, movimento... E Parmênides dirá que isto não afeta o ser: as mudanças - as mudanças de condição, de cor, de temperatura, de tamanho... tudo isso é aparência, não afeta a esta última consistência radical: o on. Este é o ponto capital e que, naturalmente, apresenta um problema: a articulação da idéia do ser invariável e a aparência - evidente - da mudança, da variedade, da pluralidade das coisas.


Este problema aparece em Parmênides e digamos que sua posição, afinal - como costuma ocorrer com as atitudes filosóficas - significa um exagero: é algo verdadeiro mas que parece inconciliável com outras verdades em outra ordem... A contraposição entre physis e on vai ser, digamos, o argumento do pensamento grego.


Ora, discutiu-se muito sobre a contemporaneidade - aproximada - de Parmênides e Haráclito. Inclusive, às vezes se considera Heráclito anterior a Parmênides, mas eu não creio nisso: a questão cronológica é duvidosa mas há em Heráclito demasiados elementos parmenidianos, o que se nota até na contraposição: contraposição é indício de influência, como é óbvio.


Como lembram, Parmênides era de  Eléia - na Magna Grécia - e chama-se eleatismo ao pensamento de Parmênides; Heráclito era de Éfeso, vive também entre o final do século VI e o início do século V a.C.. Era de origem real, procedia de uma família de origem real em Éfeso.


Inquietou muito aos estudiosos, aos que comentam sua obra e o fato de que ele tem diversos apostos... Teofrasto, discípulo de Aristóteles, diz que ele era melancólico e há até uma espécie de fábula - que chegou até o Renascimento (e depois): Heráclito, o filósofo que chora; Demócrito, o filósofo que ri... Heráclito também era chamado ho skoteinos, "o obscuro" e era comparado ao oráculo de Delfos, que não afirmava nem negava, apenas revelava o pensamento, através de sinais. Essa atitude também se atribui a Heráclito: indicar as coisas de uma maneira alusiva - recordem o que eu dizia outro dia: desses filósofos só se conservam fragmentos, às vezes citações - mais ou menos breves - em escritos de outros autores... Portanto, conhecemos frases de Heráclito que às vezes são deslumbrantes, mas que estão fora de contexto e que resultam, afinal, discutíveis...


De certo modo parece ser a total oposição a Parmênides. Parmênides fala do ente uno, imóvel, imutável, que não varia...; Já Heráclito dirá: panta rhei, tudo corre, tudo flui: a idéia da mudança, intrinsecamente. Dirá: "Não é possível banhar-se duas vezes no mesmo rio", frase famosa de Heráclito. Ou seja: ele se instala na variação, na mudança, na pluralidade... é - à primeira vista - a rigorosa inversão de Parmênides. Dirá que a guerra ou a discórdia é o pai de todas as coisas - polemos pater panton - ou seja: justamente o contrário da unidade. E que tudo é, na realidade, fogo; fogo que se acende e se apaga, que se transforma... O fogo - notem bem - é o que há de mais inconsistente. A imagem da chama, que forma tem uma chama? A chama não tem forma, está mudando constantemente... Esta mesa é perecível, a seu tempo foi uma árvore, extraíram tábuas dela, um carpinteiro a construiu, algum dia se corromperá ou se queimará, mas agora está aí e tem uma consistência, uma forma determinada... mas uma chama não! Uma fogueira está mudando constantemente, por isso, o fogo - pyr - será precisamente o símbolo da realidade que Heráclito apresenta. Como vêem, parece rigorosamente a inversão de Parmênides.


No entanto há mais coisas ainda. Heráclito dirá que a natureza gosta de ocultar-se, physy khryptesthai philéi. A natureza, a realidade, gosta de se esconder. Evidentemente, isto refere-se a algo que é decisivo no pensamento de Parmênides: a diferença entre o patente e o latente. "A natureza gosta de ocultar-se", ou seja, é algo latente, algo que está oculto e evidentemente o problema será manifestá-la, descobri-la, fazê-la patente... o que se chama em grego aletheia. Aletheia é o que não está oculto, o que se desvela, o que se revela...


Se algo latente se revela, esta atividade corresponde à latência, ao latente que se descobre e se manifesta, mas a filosofia vai consistir em algo muito diferente: vai consistir em que o homem, mediante sua própria ação, desvele o oculto, o orne patente. E isto tem sempre aparecido como uma espécie de audácia, uma espécie - de certo modo - de impiedade: o descobrir é fazer uma violência sobre o que está oculto, latente. Por isso, as acusações de asebeia, de impiedade, foram freqüentes na Grécia. Houve filósofos que foram perseguidos - mais ou menos, em diferentes níveis - porque se atreviam precisamente em desvelar o que está oculto, a realidade - não a que se revela, mas a que o homem traz à luz, aletheia. Lembrem-se da cena do Tenório quando o pai de Don Juan Tenório - no primeiro ato - repreende a Don Juan e seu rosto está coberto por uma máscara. E quando Don Juan pede que ele se descubra, ele responde:


- Nunca


- Quando me convier


- Como?


- Assim


E Don Juan põe a mão no rosto do pai e arranca violentamente a máscara...


- Vilão! Puseste a mão em minha face!


- Valha-me Cristo, meu pai!


Isto, afinal, é o que se sente - de uma forma diferente - ante a audácia do homem que se atreve a desvelar, a pôr de manifesto a realidade oculta, a realidade latente. Esta impressão de impiedade:


- Vilão! Puseste a mão em minha face!


E Don Juan trêmulo:


- Valha--me Cristo, meu pai!


Vejam como há um eco, em um drama romântico, justamente dessa atitude de inquietação, de espanto ante a audácia do homem que se atreve a descobrir, a manifestar o que estava oculto, latente. Isto aparece com importância extraordinária em Heráclito.


Mas há outra frase dele: hodos odos ano kato mia kai hote "O caminho para cima e o caminho para baixo é o mesmo e único". É uma frase que tem uma importância extraordinária: o caminho para cima e o caminho para baixo.


O caminho para cima é justamente o caminho que leva do patente, do manifesto ao latente, ao oculto. Mas ele acrescenta algo mais: que o caminho para cima e o caminho para baixo é o mesmo e único. Quer dizer: há um caminho que leva do patente ao oculto, de ida e volta: o caminho inverso, o caminho que leva do patente ao latente...


E isto lança o grande problema da filosofia grega ou, se quiserem, da filosofia simplesmente. Pois temos as coisas, as coisas visíveis, patentes, de todos os dias, as coisas conhecidas, as coisas com que lidamos... que serão, de certo modo, desqualifi-cadas pelo pensamento grego: não são onta, serão pragmata, khremata, as coisas que se usam e as que têm valor, a riqueza... Khremata anér dirá o sofista, o dinheiro é o homem; as coisas que são feitas... há toda uma série de formas de realidade, que são realidade, mas são realidades secundárias, são a realidade que não é o on, não são onta, não são verdadeiros entes.


Aparece aí um caminho, e este é o caminho da filosofia, o caminho que vai do patente ao latente, para descobrir e pôr de manifesto, pôr em aletheia, em sua verdade, isto que estava oculto, isso que agrada a physis, gosta de se ocultar, de se esconder e o homem pode pô-lo de manifesto.


Sim, mas há uma segunda parte. E creio que a grande originalidade de Heráclito é o caminho de volta, que é o mesmo: é o mesmo e único. Pode-se voltar do latente ao patente, ou seja, pode-se dar razão das coisas. Dessas coisas das quais se partiu, mas dar razão delas a partir do latente, a partir do que verdadeiramente são, a partir dessa aletheia, descoberta.


Como vêem, a história da filosofia constantemente é o problema de percorrer este duplo caminho indicado - não realizado, não levado a cabo, mas sim indicado - por Heráclito: como o oráculo de Delfos, que fala em linguagem cifrada. Agora fica uma obra incompleta, algo que está por fazer...


E é curioso o que, afinal, ocorre em toda a história da filosofia grega: ou se realça o caminho para o oculto, o latente, para o que verdadeiramente é e se abandonam as coisas, ou se tenta voltar às coisas, dando razão delas e procurando entendê-las a partir desse fundo latente, desse fundo verdadeiro, do que realmente são.


E isto vai, afinal, ser a história da filosofia grega: o problema da physis e dos physei onta, dos entes que são por natureza - nós dizemos "as coisas naturais", mas o grego emprega a forma dativa: as coisas que são por natureza: a natureza é o princípio, a arkhé das coisas naturais (por exemplo, em Aristóteles é capital a distinção entre physei, as coisas que são por natureza - as verdadeiramente reais - e as apotekhnes, por arte, por técnica).


O pensamento de Heráclito, digamos, põe o foco no fugaz, no passageiro, no móvel, no que muda, na discórdia, na guerra, na pluralidade das coisas, no que flui... tudo isso, evidentemente, aparece como - e é - o reverso de Parmênides. Sim, mas não só isso, há outros conceitos no próprio Heráclito que, afinal, são parmenidianos. Há algo que é permanente e que é único, que é o que ele chama to sophon. A palavra sophos, como sabem, quer dizer sábio. Haverá uma etapa, posterior, no pensamento grego, que vai ser justamente o ideal do sábio: o sophos (o filó-sofo é aquele que ama a sabedoria, que busca a sabedoria; Platão dirá que nem o ignorante nem o sábio filosofam - porque um não tem consciência de que não sabe e o outro já o sabe; o filósofo é um "termo médio", é aquele que sente falta do saber e o procura). Heráclito não fala do sábio (masculino), fala de to sophon, o sábio (neutro), é um neutro e diz que é único, permanente, imutável... ou seja, atribui a to sophon os atributos do ente de Parmênides. Isto é sumamente curioso.


E há além disso outros fragmentos que também apontam para essa dualidade: o mutante e o permanente.


Por exemplo, dirá que os homens despertos têm um mundo comum, enquanto que os que sonham cada um se volta para seu mundo particular... Aparece aí a pluralidade, a diversidade dos diferentes mundos particulares dos que dormem, que, afinal, não são plenamente reais; enquanto que o mundo dos despertos é um mundo comum - koinon. Vejam como aparecem, digamos, esquemas parmenidianos no pensamento de Heráclito.


Outro conceito que aparece com a unidade - e em princípio com a permanência - é o nous - um dos quatro ou cinco conceitos capitais do pensamento grego. Nous é a visão, mas com um caráter não puramente sensorial (isso é particularmente importante e também aparecerá na conferência sobre Aristóteles). Ou seja, há uma visão biológica, fisiológica, e também há uma visão intelectual - e é o sentido dominante no conceito de nous (em Anaxágoras o nous terá até umas conexões que podem ser teológicas).


Como vêem, essa contraposição entre Parmênides e Heráclito parece que tem um caráter absoluto, eu diria demasiadamente absoluto; no entanto, em última instância (sempre penso que o contrário se parece muito àquilo do que é contrário...) a atitude de Heráclito tem muito de parmenidiano ao avesso: é o reverso de Parmênides, mas conserva toda uma série de elementos, toda uma série de ingredientes do pensamento de Parmênides.


Lembro, por exemplo, que Ortega insistia muito em que no conjunto da idéia da filosofia, parecia-lhe que não se havia conferido o devido posto à variação, à mudança, à inovação e - em algum lugar - diz: já é hora de que a semente de Heráclito dê sua humana colheita (naturalmente o pensamento de Ortega significa, em boa medida, a idéia da vida humana como mudança, como variação, como liberdade, como criação..., em uma palavra, conceitos de linhagem heraclitiana, mas não somente, como é natural).


Em última análise há, de certo modo, algo de comum, algo profundamente comum entre Parmênides e Heráclito. O que acontece é que eles vêem a realidade precisamente a partir de duas perspectivas diferentes: o real está aí, está presente; Parmênides o vê por uma perspectiva e Heráclito insiste primariamente na outra: mas, naturalmente, essa realidade aparece em ambos, sob diferentes perspectivas: para Parmênides, o essencial é a unidade, a imobilidade, a perpetuidade, a consistência absoluta (evidentemente que há mudança, que há pluralidade etc. que não afeta o ente, essa consistência fundamental: será doxa, não será aletheia, será a via dos mortais...). Heráclito - outro estilo intelectual - insistirá enormemente na mudança, na pluralidade... é a perspectiva inversa, mas ao olhar a realidade, surgem os elementos de unidade, de permanência: to sophon, o nous, o comum, koinon...


Como vêem - e este é afinal o argumento interno deste curso - a filosofia tem consistido em olhar para a realidade, em tratar de descobri-la, em cada momento se experimenta uma certa perspectiva, que leva a certas conclusões, que leva a uma imagem do real. Quando se assume uma perspectiva diferente, e no caso de Parmênides e Heráclito é quase a total inversão - aparece uma realidade diferente; diferente mas na qual - em última análise - reaparecem os mesmo elementos.


Então isto - que vai se perpetuar ao longo de toda a história da filosofia - deve levar-nos a reparar na descoberta - talvez própria de nossa época - da necessidade da perspectiva e da insuficiência de qualquer perspectiva. Ou seja - e esta talvez seja a conclusão fundamental do balanço filosófico de tantos séculos - que toda perspectiva é válida, em princípio é verdadeira, mas nenhuma é suficiente, nenhuma é única, nenhuma é excludente.


E então pode-se chegar - e talvez estejamos chegando a isto em nossa época - a transcender cada perspectiva particular e descobrir - de certo modo - a insuficiência de todas elas e a necessidade e uma integração de todas elas. Ou seja, que toda perspectiva - que pode ser verdadeira, que em princípio é verdadeira - nenhuma esgota a realidade.


É um erro quando dizemos A é B e nada mais. O erro não está em dizer que A é B, porque A é B, mas é falso dizer "e nada mais", porque A é B e C e D... E toda verdade é verdadeira mas não é a única.


Por isto faz sentido falar dos estilos de filosofia e ver justamente em que consistem estes diferentes estilos, como são tentativas de aproximação da realidade. O grande erro da maneira habitual de se considerar a história da filosofia é vê-la como um repertório de erros, como um catálogo dos erros... Não ! ela é antes um catálogo das verdades insuficientes. Continuaremos na próxima quarta-feira