segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Modos de Pensar

Modos de Pensar -
Introdução a "Estilos da Filosofia"


(reproduzimos o artigo - ABC 7/10/99 - no qual o próprio Julián Marías apresenta seu
curso de conferências "Os estilos da Filosofia", Madrid, 2000 -, que começamos
a publicar, em português, nesta edição. Trad.: Elie Chadarevian)

 


Julián Marías


 


Não se pensa muito. Houve algumas épocas em que se exercitou o pensamento com extraordinária plenitude; certamente na prodigiosa Grécia, entre os pré-socráticos e Aristóteles, depois nem tanto; novamente no extraordinário século XVII e, creio que, a pesar do aparente abandono, neste século que está terminando. Mas inquieta-me um fato que se tem repetido ao longo de quase toda a história: dá-se atenção aos conteúdos do pensamento, ou seja, ao que se foi pensando; mas não tanto à maneira como se pensou, isto é, ao que se entendeu por "pensar".


Proponho-me apresentar, num curso que estou preparando, esta questão: "Os estilos da filosofia". Destacarei uma série de filósofos, que não necessariamente são os mais "importantes" pela magnitude de suas doutrinas, mas porque com eles iniciou--se uma nova maneira de pensar, uma concepção original da filosofia. Levar isto em consideração dá uma nova perspectiva à transformação do "argumento" desse estranho e fabuloso empreendimento que é a filosofia.


Cheguei a interessar-me por isso ao refletir sobre minha própria experiência. Tenho acompanhado, na experiência dos outros [1] , diversas formas atuais de filosofar, em contatos pessoais, entre meus mestres e amigos, em leituras atuais e muito próximas: isto me fez reparar em minha própria maneira pessoal de proceder. Há diferenças consideráveis na forma de enfrentar a tarefa de escrever um artigo cujo núcleo é o pensamento, a preparação de um curso de conteúdo intelectual, ou, escrever um livro filosófico. Por que não tentar esclarecer a questão mesmo que se trate de uma "questão menor"?


Quando me proponho a escrever um artigo, parto de uma inquietação, de uma pergunta, de uma dúvida sobre algo que me parece problemático. Ou seja, sobre o que vou escrever, movido pela necessidade de entender algo, de esclarecer a mim mesmo sobre alguma parcela do imenso horizonte discutível. O passo seguinte é pensar sobre como esta questão apresenta-se a mim e, portanto, sobre o que posso dizer. A última etapa é a mais fácil: escrever o artigo, em geral de um fôlego só em uma hora aproximadamente, porque se trata de expressar, num único movimento mental, o que se tinha pensado, que deverá corresponder à leitura continuada do artigo.


Outra coisa é a elaboração de um curso. Neste caso o que é decisivo é a imaginação de uma perspectiva em que aparece a articulação de um problema. O que se deve descobrir é um "argumento", isto é, uma estrutura dramática em que se apresenta uma questão. É necessário "olhar" a partir do ponto de vista inicial, e ver que passos se impõem para continuar pensando. Esclarecer uma questão proposta conduz inexoravelmente a outras concatenadas com ela, numa conexão que não é meramente "lógica" - a menos que se trate de uma lógica da razão vital -, mas biográfica, exigida pela necessidade de saber a que se ater. Esta é a forma real em que posso propor um curso de conteúdo teórico. Isto requer imaginar um auditório. Um curso é a colaboração entre quem o dá e os que o recebem, ou seja, os ouvintes. Isto exige a formulação verbal, oral, do curso; trata-se de falar aos que escutam. Não se pode ler, porque isto introduz uma forma de abstração e despersonalização; é aborrecido e, afinal, ler por ler, pode-se ler em casa. Além disso, a estrutura da frase escrita está adequada à leitura, não à audição, e não cai bem ao ouvido. Quando se fala, o ouvinte sente-se afetado, interpelado pessoalmente, e compreende o que é dito a ele, sente que valeu à pena ter se deslocado para assistir ao nascimento de algo que está brotando diante dele.


Um livro filosófico é uma terceira coisa, também diferente. É uma estrutura dramática, argumental, mais complexa e que requer uma "apresentação" global prévia à sua realização. Quero dizer que, antes de ser iniciado, o livro tem que ser "antecipado" em seu conjunto. Recordo muito bem a gênesis de meu primeiro livro sistemático, "Introdução à Filosofia". Numa tarde do Outono de 1945, recém terminada a Guerra Mundial, fiquei em casa diante de uma ficha de papel em branco. Compus um "índice" dos capítulos indicando um aspecto para cada um; em um par de horas preenchi aquela ficha: já tinha o "argumento" do livro. Pus-me a escrevê-lo, ao longo de quatorze meses, com uma ordem rigorosa: uma vez, por falta de livros, tentei alterar a ordem dos capítulos, antecipando o que deveria vir depois, mas não pude fazê-lo: tive que esperar e continuar a ordem anteriormente estabelecida. E ao final, o livro foi concluído, com seu índice real. Verifiquei que coincidia quase exatamente, cerca de oitenta por cento, com o que esbocei naquela tarde de outono, antes de escrever a primeira linha.


Que ordem era aquela, que se impunha a mim com tanta força? Reparei que era a ordem de um romance. "Introdução à filosofia" era um empreendimento proposto a alguém, ao leitor, um empreendimento dramático, um projeto imaginativo de assumir o ponto de vista de quem filosofa. Reparei que um livro filosófico deve ser lido em sua integridade, até seu desfecho, como um romance - por isso não deve ser excessivamente extenso - ainda que seja aconselhável "voltar a começar" numa segunda leitura, pausada e reflexiva, na qual se assegure a plena posse da doutrina. Trata-se de "repensá-la", assumi-la, com as correções, que podem ser essenciais, reclamadas pelo leitor. Um livro filosófico deve ser lido filosoficamente, de modo que se incorpore à mente do leitor em sua própria perspectiva. Insisto em que o livro, possuído argumentalmente antes de sua realização, não está "escrito" nesse momento. Vai surgindo passo a passo, vai brotando na medida em que se desenvolve seu argumento, como que seguindo a atração de sua meta. Vem-me à memória uma, entre tantas daquelas felizes fórmulas de Goethe, talvez não realizada em sua própria obra: Geprägte Form, die lebend sich entwickelt, forma cunhada que se desenvolve vivendo. Neste aparente paradoxo expressa-se o caráter simultaneamente sistemático e aberto, que pertence à filosofia.


Este é um exemplo mínimo e praticamente sem valor, de um modo de pensar filosófico. Formulei-o porque tem a facilidade de ser imediatamente acessível e analisável. Tome-se como um mero exemplo sem maiores conseqüências. O interessante é examinar o que tem sido, ao longo dos últimos dois milênios e meio, os estilos da filosofia, as etapas, em continuidade sempre inovadora, do empreendimento mais próprio do Ocidente.


http://www.hottopos.com/ - International Studies on Law and Education 3


Publishers: Harvard Law School Association / EDF - Fac. de Educação da USP – São Paulo 2001


 



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